quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A Tropicália II - O Movimento em Discos


Caetano Veloso
            Eu tenho uma profunda identificação com o Tropicalismo, com a ideia de que não há linhas, que nada tem uma ordem natural para nada, que a cultura é infinitamente transitiva. Que tudo de mais caoticamente oposto pode formar uma bela unidade. Uma frase de Caetano Veloso sobre o movimento expressa exatamente o motivo pelo qual eu me identifico tanto com a produção cultural iniciada naquela época:

"O Tropicalismo chegou e mostrou que todas aquelas ideias e gostos tão opostos dentro de mim podiam coexistir em harmonia."

            Quantos de nós já nos perguntamos se podíamos ser sérios sem perder o bom humor, fazer diferente sem deixar de ser nós mesmos? Muitos, talvez a maioria, e o Tropicalismo mostrou que essa união contrastante era possível e não tem melhor maneira de mostrar isso do que falando das canções Tropicalistas. Segue abaixo algumas palavras minhas sobre a produção musical de três dos principais Tropicalistas durante o movimento: Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé. Vamos começar pelo disco lançado em grupo por todos eles em conjunto sob o nome de “Tropicália ou Panis et Circenses” e daí vamos adiante. 


Panis et Circenses ou Tropicália - 1968


            Esse disco do Caetano, Gil e Tom Zé lançado em conjunto com vários outros artistas foi o pontapé inicial na bunda da música brasileira que entediava os brasileiros. Dentre as faixas, destaca-se a canção tema do movimento, “Tropicália”, em que Caetano expressa todo contraste, riqueza, confusão e beleza do movimento: 

“O monumento
É de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde
Atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga
Estreita e torta
E no joelho uma criança
Sorridente, feia e morta
Estende a mão”



            Outras duas faixas interessantes são “Panis et Circenses” dos Mutantes, onde criticam “as pessoas da sala de jantar que são ocupadas em nascer e morrer”. O título da canção que também dá nome ao disco quer dizer “Pão e Circo” em Latim, obviamente criticando o conformismo da época e a falta de espaço para o questionamento. Temos também a canção de Caetano “Baby”, em que Gal Costa diz o quanto “Você precisa saber da piscina, da margarina, da Carolina, da gasolina, você precisa...”. 


            Considero um disco mais histórico do que artisticamente relevante. Eu sugiro mesmo é que você ouça os discos a seguir. 


CAETANO VELOSO

            Na minha opinião, Caetano Veloso é o maior artista brasileiro de todos os tempos. Ele não é o meu artista preferido, mas não tem como não dobrar os joelhos para quem fez tudo que ele fez e acima de tudo que ainda faz. Garanto que a maioria torceu o nariz, muitos acharam exagero e alguns poucos entenderam, mas não concordaram. De qualquer forma acho que entramos no consenso de que ele é pelo menos um dos maiores - e melhores. Para entender melhor, dê uma olhada nessa análise dos dois discos do Caetano lançados durante a Tropicália:




Caetano Veloso – 1968 

            O segundo disco lançado por Caetano, completamente inspirado pelas ideias discutidas com Gilberto Gil, sua irmã Maria Bethania e seu produtor Rogério Duprat que mais tarde as identificariam como o conceito do movimento “Tropicália”. Letras críticas construídas com recursos refinados da poesia como não se tinha visto em solo brasileiro ainda, encorpadas por belas canções. Um disco admirável que anunciava a grande obra do disco do ano seguinte. 

            Com certeza você já ouviu a canção “Soy Loco Por Ti America”, mas provavelmente nunca percebeu sobre o que ela realmente falava. Uma tristeza cantada com um sorriso forçado pelo fuzil nas costas, é isso que é essa música. No início, Caetano fala da união dos povos latinos, tão parecidos na sua miséria e necessidade: 

“Soy loco por ti de amores
Sou louco por ti de amor
Tenga como colores
Tenha como cores
La espuma blanca
A espuma branca
De Latinoamérica
Da América Latina
Y el cielo como bandera
E o céu como bandeira
Y el cielo como bandera...
E o céu como bandeira...”
            O Socialismo estava em alta nos anos 60, principalmente nos países latino-americanos. Caetano obviamente faz essa letra em espanhol falando numa união dos povos latinos sob uma bandeira de seu céu, seu mar compartilhado por todos eles e não sob o brasão militar mais poderoso deles. O trecho seguinte deixa bem claro o que ele pensa da política opressora da época: 

“El nombre del hombre muerto
O nome do homem morto
Ya no se puede decirlo, quién sabe?
Já não se pode dizê-lo , quem sabe?
Antes que o dia arrebente...
Antes que o dia arrebente...
El nombre del hombre muerto
O nome do homem morto
Antes que a definitiva
Antes que a última
Noite se espalhe em Latino américa
Noite se espalhe na América Latina
El nombre del hombre
O nome do homem
Es pueblo, el nombre
É povo, o nome
Del hombre es pueblo...
Do homem é povo...”

            Uma tristeza cantada com um sorriso forçado por um fuzil nas costas, entendem? O Ato Institucional Nº 5, ou só AI- 5, feito pela Ditadura Militar tirou o direito de se estar na rua conversando, o direito de tocar e cantar, o direito de ser qualquer coisa. Pessoas eram abordadas, postas dentro de carros policiais e nunca mais vistos, outros eram torturados pelo DOPs até não sobrar nada de suas almas e não se podia dizer nada. Mortos sem nome, homens de família, artistas e políticos enterrados como indigentes. Todos eram um homem morto que não se podia dizer o nome, pois seu nome era Povo. 


            O disco também contém outras canções belíssimas como “Clarisse”, “Onde Andarás” e a famosa “Alegria, Alegria” com a qual Caetano concorreu no festival de 69 cantando sem lenço e sem documento.



Caetano Veloso - 1969 

            Nesse disco incrível, Caetano amadurece todas as ideias que permeavam seu pensamento na Tropicália construindo essa verdadeira obra. Além das referências literárias e da fusão de vários estilos musicais, o disco conta com um novo fator: músicas em inglês, o que deixa mais claro ainda a influência da música europeia no disco. Num primeiro momento a reação é de estranheza, mas músicas em línguas estrangeiras sempre foram comuns naquela época, tanto que Caetano gravara “Soy Loco por ti America” no disco anterior, enquanto outros artistas gravavam até mesmo em francês. 

            A música "The Empty Boat" (O Barco Vazio) é uma música que juntamente com a faixa seguinte se conectam com as insatisfações sobre a opressão dos militares presentes no disco anterior, no entanto não apenas criticando o que ocorria, mas a impotência, vazio e deslocamento resultados dessa opressão. 

“From the stern to the bow
Da popa até o arco
Oh; my boat is empty
Oh, meu barco está vazio.
Yes, my heart is empty
Sim, meu coração está vazio
From the hole to the how
Do buraco ao meio
From the rudder to the sail
Do leme à vela,
Oh my boat is empty
Oh meu barco está vazio
Yes, my hand is empty
Sim, minha mão está vazia
From the wrist to the nail
Do pulso até as unhas.
[...] From the east to the west
Do leste ao Oeste
Oh, the stream is long
Oh, o curso é comprido
Yes, my dream is wrong
Sim, meu sonho é errado,
From the birth to the death
Do nascimento à morte.”

            Esse sentimento de desconexão em relação a realidade e a impotência de fazer qualquer coisa para muda-la do qual Caetano fala acaba por antever o seu exílio forçado em 1970. Essa ideia de deslocamento é retomada em “Marinheiro Só” numa musica tipicamente Tropicalista em que uma crítica ao “homem que serve a pátria” é feita através de uma zombaria alegre e com referência a uma conhecida cantiga brasileira: 

“Eu não sou daqui
Marinheiro só
Eu não tenho amor
Marinheiro só
Eu sou da bahia
De são salvador
Lá vem, lá vem
Como ele vem faceiro
Marinheiro só

Todo de branco
Com o seu bonezinho
Marinheiro só

Ô, marinheiro marinheiro
Ô, quem te ensinou a nadar
Ou foi o tombo do navio
Ou foi o balanço do mar?”


GILBERTO GIL

            Eu confesso que sempre tive uma ideia não muito positiva de Gilberto Gil pela sua fase reggae dos anos 80 para 90, mas conhecendo seu trabalho no início descobri o grande artista que ele é. Pode-se dizer que ele foi o grande vanguardista de todos Tropicalistas. Desde suas primeiras gravações em 1962 são notáveis os elementos da música popular regional e o “falar da rua” que seriam as principais características da música Tropicalista junto com as críticas sociais disfarçadas ou nem tanto, como na perturbadora imagem de que “está jorrando petróleo, jorrando noite e dia” da canção “Povo Petroleiro” sobre a exploração das classes pobres para a exploração da riqueza para o benefício de poucos.






Gilberto Gil - 1968

            Até esse disco, as músicas de Gil basicamente seguiam os padrões de produção populares da época, mas era notável a presença maciça de estilos regionais como o nordestino, o samba e o baiano não tão comuns nas músicas de outros artistas que se prendiam aos “seus estilos”, no entanto ainda não havia letras que falassem abertamente de críticas sociais na produção musical de Gil. Nesse disco de 68, Gilberto Gil definitivamente rompeu essa barreira e recriou-se como um ícone do Tropicalismo, no entanto muito mais na melodia do que na letra, parte melhor dominada por Caetano. A música a seguir, “Márginália II”, mostra isso: 


“Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão

Aqui é o fim do mundo

[...] Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá

A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá

Aqui é o fim do mundo...”


            Nessa música nota-se muita coisa. Primeiramente a ênfase a nacionalidade, segundo o descontentamento com a realidade, terceiro a referência a outros textos (..Minha terra tem palmeiras...), o humor de “yes, nós temos bananas”, além de uma coisa muito interessante e bastante presente na melodia das músicas: O arranjo de Rogério Duprat lembrando a velocidade, o movimento ininterrupto da modernidade. Pura influência do Futurismo, dentre tantas outras referencias literárias exploradas pela Tropicália.


TOM ZÉ

            Para ser honesto, não sinto que sei o suficiente para falar do Tom Zé, mas para perceber a grandeza desse cara, basta parar e ouví-lo. Ouví-lo sim, não vê-lo. Tom Zé é um dos artistas brasileiros de pensamento mais complexo que já conheci. Ele tem tanto a dizer, que num primeiro momento você tem a impressão que ele se atropela pelo entusiasmo do assunto, aí ele para um pouco e começa a explicar, e mesmo assim fica difícil compreender a linha de pensamento, mas com um pouco de esforço você acaba entendendo e se dá conta da mente brilhante que é esse homem. 




Grande Liquidação – 1968 

            Para você realmente entender quem é esse cara, basta ler o texto contido na contra-capa do disco de 68: 

            “Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade. O sorriso deve ser muito velho, apenas ganhou novas atribuições. Hoje, industrializado, procurado, fotografado, caro (às vezes), o sorriso vende. Vende creme dental, passagens, analgésicos, fraldas, etc. E como a realidade sempre se confundiu com os gestos, a televisão prova diariamente, que ninguém mais pode ser infeliz. Entretanto, quando os sorrisos descuidam, os noticiários mostram muita miséria. Enfim, somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade.(As vezes por outras coisas também). É que o cordeiro, de Deus convive com os pecados do mundo. E até já ganhou uma condecoração. Resta o catecismo, e nós todos perdidos. Os inocentes ainda não descobriram que se conseguiu apaziguar Cristo com os privilégios. (Naturalmente Cristo não foi consultado). Adormecemos em berço esplêndido e acordamos cremedentalizados, tergalizados, yêyêlizados, sambatizados e missificados pela nossa própria máquina deteriorada de pensar. "-Você é compositor de música "jovem" ou de música "Brasileira"?" A alternativa é falsa para quem não aceita a juventude contraposta à brasilidade.. (Não interessa a conotação que emprestam à primeira palavra). Eu sou a fúria quatrocentona de uma decadência perfumada com boas maneiras e não quero amarrar minha obra num passado de laço de fita com boemias seresteiras. Pois é que quando eu abri os olhos e vi, tive muito medo: pensei que todos iriam corar de vergonha, numa danação dilacerante. Qual nada. A hipocrisia (é com z?) já havia atingido a indiferença divina da anestesia... E assistindo a tudo da sacada dos palacetes, o espelho mentiroso de mil olhos de múmias embalsamadas, que procurava retratar-me como um delinquente. Aqui, nesta sobremesa de preto pastel recheado com versos musicados e venenosos, eu lhes devolvo a imagem. Providenciem escudos, bandeiras, tranquilizantes, antiácidos, antifiséticos e reguladores intestinais. Amém.”


            Eu tenho a impressão que Tom Zé apenas flertou com o Tropicalismo, pois até hoje ele utiliza muito dos recursos poéticos de composição das letras Tropicalistas e também da experimentação, sem no entanto dar aquela cara colorida e “nacional” que Caetano, Gil e os Mutantes tentavam tanto fazer misturando pandeiro com guitarra elétrica. Recursos como o uso de termos opostos para efeito e também a crítica social podem ser facilmente percebidos na hilária “São, São Paulo”: 

“São, São Paulo meu amor
São, São Paulo quanta dor
São oito milhões de habitantes
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Caseados à prestação
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito
São, São Paulo Meu amor”

            Sendo mais direto, Tom Zé nunca esteve totalmente dentro do Tropicalismo por que o Tropicalismo não conseguia “comportá-lo”. Entenda como quiser.


F. Essy

Continua em Outra Postagem...

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