sábado, 8 de junho de 2013

Não Tinha Medo o Tal João de Santo Cristo...

"...era o que todos diziam quando ele se perdeu." É impossível não ouvir a voz de Renato Russo ao ler o primeiro verso de Faroeste Caboclo, uma de suas canções mais famosas que virou filme e estreou no último dia 30. Quando eu soube dessa ideia, eu confesso que virei a cara, afinal a beleza da musica é justamente imaginar a história cantada por Renato, mas assim que eu assisti o primeiro trailer eu percebi o quanto eu estava errado e você vai descobrir o porquê.


      Como bem sabemos, a história da canção fala de João, um transgressor da sociedade que nunca funcionou para sua classe ou sua cor, e por isso ele arruma o próprio jeito de ganhar a vida vendendo drogas, no entanto João comete o erro de todo anti-herói: tenta entrar no sistema de "bom moço" que nunca o aceitou para agradar a encantadora Maria Lucia, mas seu traficante concorrente, Jeremias, não demora a lhe lembrar que a sociedade é uma utopia falida e no fim temos um verdadeiro duelo entre João e Jeremias, em que eles e Maria Lucia morrem com toda dramaticidade de um verdadeiro faroeste, e o diretor do longa René Sampaio percebeu muito bem o potencial disso.

        Durante certas partes do filme, é quase impossível não ouvir o tema de Django na cabeça, afinal João lembra muito o anti-herói de Tarantino, mas é tudo mera impressão. Mesmo o filme se passando em plena era disco, quando a televisão vendia o estilo do negro americano cheio de marra, não há como enxergar o personagem de Fabrício Boliveira como um cara durão que se vinga da sociedade por diversão, como fariam os cowboys de Western-Spaghetti, na verdade notamos várias vezes que João está sempre com medo que o mundo lhe esmague, como se a vida fosse um jogo-das-cadeiras onde você não consegue escutar a musica pensando que pode não haver mais lugar para você ficar a qualquer momento. Por isso João de Santo Cristo não é um vingador justiceiro, mas o pecador que quer levar o diabo com ele para o inferno.


        Faroeste Caboclo não é apenas uma representação visual das cenas descritas por Renato Russo, é também uma excelente contextualização de uma história que muitos de nós hoje em dia não entendemos totalmente por que ela tem partes que nem todo mundo conhece. O filme retrata bem que o tráfico de drogas no Brasil inicialmente não era toda essa coisa das quadrilhas organizadas das favelas, mas apenas alguns grupos pequenos que brigavam pelo monopólio da maconha aos trancos e barrancos. O atual império do tráfico só surgiu nos anos 80 depois que a rota pela Amazônia pela qual a maconha entrava no país foi fechada, como Renato diz na canção "Conexão Amazônica":
"Os tambores da selva já começaram a rufar. A cocaína não vai chegar. Conexão amazônica está interrompida"
        Isso mudou quando os presidiários que haviam tido contato com os comunistas na prisão levaram as táticas de guerrilha para o morro, criando sua terra a salvo da lei e é exatamente entre esses dois pontos que se passa a história.

Daqui por diante vou falar sobre alguns detalhes do filme, não leia se não quiser saber!


      O filme começa mostrando um fragmento da vida de João em sua terra natal antes de partir para Brasília, em uma cidadezinha nordestina chamada Santo Cristo, no entanto o espectador não entende que a cena não está completa do jeito como ela é mostrada, parecendo algo descartável. A sequência dos eventos que são mostrados no começo podia muito bem ter ficado no início também, nos ajudando a entender o aparente "rebelde sem causa" que só se justifica depois.


          Até a chegada de João em Brasília a introdução dos personagens parece um pouco forçada, mas assim que ele conhece seu primo Pablo (aquele peruano que vivia na Bolívia), o filme engrena e temos uma baita produção. Um fato que me preocupava era como João e a personagem de Ísis Valverde iriam se relacionar, afinal como uma menina tão doce fez o bandido temido no Distrito Federal se redimir? Na verdade eu nem imaginava como eles poderiam se conhecer sendo tão diferentes a principio e é incrível como o roteirista Marcos Bernstein resolveu isso: Ele pensou em Maria Lucia como uma jovem idealista que via no preconceito social e racial do pai uma ignorância, assim como a maioria dos jovens da época, que eram extremamente politizados. O romance com João é uma forma de provar seu ponto de vista para si mesma e para o mundo.

        A melhor cena do filme é o tão esperado duelo final entre Jeremias e João. René Sampaio utilizou-se de uma "licença poética" para mudar a situação original da última cena na música, que seria no meio da rua com todas pessoas e imprensa assistindo. Formando uma imagem sugestiva, vemos os dois personagens, pessoalmente diferentes, acabarem do mesmo jeito num duelo que termina com a vida dos dois na aridez de um campo de futebol.


         O filme não tenta se passar por um enlatado americano, pois o diretor de fotografia Gustavo Habda nos passa as sensações a flor da pele entre Maria e João de um jeito tão peculiar quanto trabalha a tensão de João acossado pelo crime e pela lei. A trilha de Lucas Marcier também mostra um amadurecimento do cinema brasileiro que deixa a coletânea de vários artistas de lado para acreditar numa trilha instrumental feita especialmente para ampliar os efeitos de fotografia e nos presentear com esse belo filme que ao mesmo tempo homenageia uma das canções mais importantes da música brasileira, também abre portas para futuras produções que terão mais um exemplo bem sucedido do cinema nacional, no entanto fica difícil todos perceberem isso quando um filme tão importante é deixado para ser exibido numa sala pequena e mal equipada, como foi onde eu assisti um dia após a estreia. Tenho certeza que não foi por que o cinema não tinha condições, por que já tive ótimas experiências lá, e sim pela pura falta de interesse em valorizar e incentivar a produção cultura nacional por que filmes viraram um produto comercial e é muito mais fácil lotar as salas com a segunda sequência de um filme de comédia ou com uma aventura fantástica do que mostrar para as pessoas que cinema brasileiro não precisa vestir um chapéu cheio de frutas em três dimensões e rebolar de armadura de ferro para ser cinema. Yes, nós temos câmeras.

Felipe Essy


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